Serão mesmo os nomes que dão existência às coisas?

Que vida a minha, meu admirador incondicional, que vida a minha, veja bem, olhe só, logo a mim que descanso os meus olhos bugalhados no azul repousante da água do mar e do céu azul, logo me havia de acontecer, a mim que de túnica azul de punhos vincados fui (e ainda sou) modelo vivo de pintores refinados e afamados (raio de rima, que cretina), diga lá se faz algum sentido. Olhei de soslaio a única fada que sempre acorda na véspera (tão e tão inteligente é!) em jeito de sedução, e: charadas a esta hora da manhã, são só ainda cinco horas de um dia de Agosto morno e calmo, é cedo para acordar e muito mais cedo é para adivinhar sentimentos, mas reconheço que a túnica azul de punhos vincados lhe fica a matar, está linda, se faz algum sentido, o que é que não faz sentido, explique. Soube ontem, meu repousante admirador de olhos azuis, soube ontem que os antigos gregos (e os chineses e os hebreus) não tinham uma palavra para designar a cor azul, só no século XV é que os pintores pintaram o mar de azul; antes, o mar era verde, acastanhado ou cor de vinho, estou desolada, eu que tanto me arrimo (e descanso) nos tons azuis, nem o céu era azul, vida, e tanto eu gosto de azul risonho. Não se amofine, descansei-a, dar nome às coisas é uma forma milenar de dar cor e complexidade ao universo, agora me recordo do diálogo o Crátilo, onde se discute (e pondera) que talvez sejam os nomes a dar existência às coisas. Surpresa nenhuma, meu admirador, há muito e muito tempo que desbravei o pensamento do Platão, já depois (está bem de ver) de me aventurar bíblia adentro “no princípio era a palavra e a palavra estava com Deus e a palavra era Deus”, não é isso que está em causa, é mais que isso. Não?! Senti-me a perguntar atónito. Os olhos grandes com que ela iluminava o meu quarto ainda ficaram maiores, tipo holofotes pesquisadores. Não, não é isso que está em causa (céus, tantos são os seus livros empilhados aqui no chão, acudam, tropecei, vida, que raio de organização desorganizada!), adiante. O que acontece é que percebi que eu (tão linda e tão prendada) nasci antes das palavras, cheguei antes ao mundo antes das palavras, transporto ainda sentimentos sem palavras, tumulto de sentimentos afins à beleza, à bondade, à inteligência, sentimentos anteriores aos diplomas de seres humanos; céus, sei-me princesa e toda a alma ponho no que digo e faço, apenas com dois a e um ~ escrevo poemas e inspiro poetas e filósofos. Como é que é, nasceu antes das palavras, ouvi bem, mesmo? Nasci sim, verdade, nasci antes das palavras e ainda agorinha mesmo não preciso de palavras para me divertir e sorrir perante o seu estado incendiado e hirto, perante esse seu súbito e impaciente desejo, deuses do Olimpo! Cubra-se ou eu não respondo por mim, quero lá saber dos nomes das coisas, perdi-me nos seus olhos azuis, outros valores mais altos se alevantam, tenho o dom palpável de metamorfosear o meu corpo, sou irresistível, verdade, eu sabia! E, apalermado de tolo (tolo ou todo, tanto faz), eu ia tendo um ataque cardíaco quando ela se desfazia da túnica, trauteando de olhos piscos: não conte da minha túnica azul de punhos vincados que agora deixo cair aos pés e não conte do meu silêncio de falas cristalinas; vida, acredita que por bosques de sonhos abro alas mas o caminho para mim ainda não sei?

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