A vacilante lanterna mágica de Proust

Ainda a via graça e a escrita…
Veja lá se se atreve e responda-me: quando escreve não inventa, descobre, digo, recua avançando? Caía a tarde, o cheiro a restolho esbatia-se com a brisa da bica de água fresca, e já a voz-pessoa, minha conhecida e sempre desejada, me interrompia sobre as coisas que escrevo (gosto, sabe disso, da sua escrita, gosto até das palavras omitidas, por vezes mais que as proferidas, rimou, ups...). Certamente, respondi, certamente que na escrita também avançamos recuando, e descobrir não exclui o inventar. E ela: e o inverso é verdadeiro. E eu: que lhe parece, não pensa que, por exemplo, na reflexão de Proust o que mais nos atinge é a percepção de que o meio do caminho nos confronta com passados que não nossos mas de que somos herdeiros e testemunhas? Gosto da sua pergunta, trauteou, folgo em saber que neste momento já sou mais que voz, está a sentir-me encarnada, digo, está sentir-me formas perfeitas e olhos bugalhados inteligentes (linda, perfeita, simples, sensual, que se há-de fazer?), está a sentir-me aqui nesta casa, ui a lareira do meu tamanho, céus, vida), mas vamos lá então à resposta que já estou atrasada para uma serenata de grilos. Seja. Claro que sim, a reflexão de Proust ilustra bem a navegação no tempo (navegar oscilar, consegue perceber?). Adiante que hoje não tenho tempo, deixe esse seu ar de “que linda ela é”, e pergunte o que eu sei que vai perguntar, quer saber se eu sou a voz do Ser. Ora essa, ripostei, se sabe o que lhe ia perguntar, responda e vamos ver o que dá o tira-teimas. Seja, ciciou, seja como quer, vamos lá então, já entendi que precisa de me tocar, acalme-se, agora não é hora. Aí vai a resposta. Sim, é sim, para si sou a voz do Ser, e sim, sou a voz do Ser num corpo (e alma), únicos e perfeitos: sou eu que represento (e dou sentido) à sua existência, também por meio da via graça: assim no jeito da vacilante lanterna mágica de Proust. 

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