A curiosa estória de uma sopa deliciosa

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Já lhe tinha dito que agora sou soprano, digo, sou soprana (assim é que deveria dizer-se de acordo com as modas políticas) num coro ((raio de nome: Notas Solfejadas (ou será Notas Soltas?)) que canta madrigais do século XVII? Não disse, pela sua cara de espanto (sei bem que está acordado e à minha espera) já percebi. Não disse, mas também isso agora não importa. Importa sim, isso sim, importa conhecer (em pormenor) os contornos da sua conversa de ontem à lareira, aquela estória tem que se lhe diga, eu estava lá e vi bem a sopa que também comeu, essa de dizer que só bebeu um copito de geropiga e nem sequer ter dito que essa tal de anciã lhe ofereceu um saco de laranjas, adiante... Outra vez, pensei comigo, cá está ela de novo (será que eu confundi madrigal com madrugar?), ela, a única fada que tudo sabe e tudo vê, e que me acorda e que sempre me rapina a minha manta de lã merina. Seja como ela quer, raio de fada tão linda é, aquela túnica azul de punhos vincados é a minha perdição. Respondi-lhe: sim, é verdade, enquanto ouvia a estória (que agora - ainda não é  o tempo certo - não vou contar) comi - num prato antigo - uma "sopa-caldo" quente com pinhões, alho porro, cebola, cherovia, tomate, polvilhada com gengibre e metade de uma malagueta e enfeitada com salsa. Uma "sopa-eu", interrompeu-me ela com os olhos grandes a alumiar a manhã, uma sopa deliciosa. Como é que é? Disparei. Não seja assim, a voz dela aveludou-se para me responder, a língua apenas consegue distinguir quatro sabores (doce, amargo, salgado e azedo); e, por vezes (tão poucas!), quando saboreamos o que comemos sem identificarmos nenhum dos outros sabores e (até) nem qualquer combinação entre eles, dizemos (como no caso da sopa que referiu): está deliciosa. Digo-lhe mais, continuou, digo-lhe que, para identificar esse sabor delicioso, foi escolhida a palavra japonesa umami. Tudo bem, agradeço a sua explicação, sei que é prendada, única, deliciosa (e agora também soprana), disse-lhe, mas daí até à sua expressão "sopa-eu" (metáfora de "sopa-caldo") vai uma distância enorme, léguas. Essa agora, gaguejou muito corada e sorrindo, essa agora, homessa, recordo bem uns momentos mais íntimos entre nós. Foi assim num desses momentos: contei o tempo que levou a tentar identificar os quatro sabores ou a combinação entre eles e gostei, gostei: mas agora, Santo Deus, Jesus, Maria, acudam, só vejo os seus bonitos olhos azuis espantados e a sua voz a cantarolar-me: é deliciosa. Eu, deliciado (ups) lembrei-me do que tinha acontecido, e sorri embevecido... Não se deu por achada e rematou, felina-guicha, divertida mas com ar sério: o umami é o sabor do L-glutamato (C5H9NO4), o aminoácido predominante na composição da vida; e, ciciou em jeito de fósforo que se acende: nunca se esqueça que a língua adora aquilo de que o corpo precisa... Tu queres ver (matutei com os meus botões), tu queres ver que ela, além de linda e deliciosa e única (e de ora em diante soprana em madrigais do século XVII), também é uma neurocientista?
Adenda
Para ouvir e apreciar (se houver tempo e vontade para reler o texto).

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