Não, não, não disse, gaguejou ela entre gargalhadas soltas e trinadas

Há dias assim, meu caro admirador de mim inteirinha, há dias em que sonho e não entendo patavina do que o meu sonho possa querer significar. Ontem foi um dia desses. Pensei e voltei a pensar, e perguntei-me: terei eu sido (noutra vida) pitonisa em Delfos, já fui Sibila? Sei, claro que sei que está explicado o mistério do oráculo Delfos; embora, alto lá, há frases do oráculo que me deixam de franja à banda, esta, por exemplo, esta enigmática (ou talvez não!) frase de Heraclito: "O Senhor, cujo oráculo está em Delfos, não diz nem oculta, apenas indica por meio de sinais". Se a noite já estava muito quente mais quente ficou, não me dei por achado, e de soslaio apreciei o chegar palrado da única fada-musa-deusa que conheço e admiro e venero: cabelo apanhado, camisa azul de dormir ondulada em curvas soltas e com punhos vincados, mãos acesas e dedos finos em conversa distraída, formas únicas e descalça. Perguntei-lhe: não considera abusivo da sua parte, a esta hora (tão cedo), querer falar de um sonho de que nem sabe falar? Mas, continuei, já que me acordou, que tal fazer de Sibila e contar do que se recorda? Então não, suspirou de risinho a tiracolo, conto-lhe agora apenas algumas palavras soltas, nelas reside o sentido do oráculo, estas: "os humanos não mudaram de mundo, mudaram de ser, mudaram a imagem de si mesmos, é necessário pensar os humanos como a realização dos seus artifícios e dos seus artefactos". Preparava-me para lhe dizer que (às tantas) o que estaria escondido nas palavras (que eu tinha acabado de ouvir) era a confirmação de que nos dias de hoje a Humanidade (terminada a revolução neolítica) entrara numa nova era, estando em desenvolvimento uma nova revolução, a revolução biolítica. Não tive tempo. Ela sorriu-me divertida, e disse que tinha estado a pensar enquanto lia o meu pensamento, e que sim, que bem podia ser esse o significado escondido, ou seja, que não só já se alteravam organismos biológicos quanto até já se estavam transferindo propriedades biológicas para objectos inertes; e disse ainda que isso implicava pensar os seres humanos através das novas tecnologias em evolução, e mais, insistiu: "as questões novas com que os humanos se confrontam (derivadas da evolução da tecnologia) devem articular-se com todas as dimensões dos artifícios humanos: as leis, os costumes, as instituições, dimensões estas que não podem estar dissociadas dos conhecimentos científicos e da realizações tecnológicas". Que linda, tão linda, e que sábia e que capaz de fazer coisas, ouvi-me dizer. E ela: meu caro, que calor aqui está, não diga a ninguém, vou tirar a minha camisa de dormir, o calor sufoca-me. Não! Sim!... Se bem o pensou melhor o fez: já está, uff, que alívio. O silêncio fez-se cristal e passei-me dos carretos em desassossego de tanto desejar; mas lembro-me bem (e eu não estava a sonhar) de a ouvir rir como quem tem cócegas (risos e brancura dos dentes andavam num piparote), enquanto trauteava: dizem que Delfos é o umbigo do mundo porque Zeus colocou lá um ónfalo. Não brinque comigo, pedi, não brinque: disse mesmo que Zeus colocou um falo no umbigo do mundo, a sério? Não, não, não disse, gaguejou ela entre gargalhadas soltas e trinadas.

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