Asja Lacis - Capri -1924: traço e aura são "conceitos tramados"


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Asja Lacis, uma actriz e directora de teatro lituana que trabalhava com Brecht e que Walter Benjamin conheceu em Capri, em 1924 (data decisiva na sua vida), poderá ser considerada o traço e a aura na (e da) vida e na (e da) obra de Walter Benjamin. Desde essa data, todos os escritos de Benjamin ganham contornos novos, nascem constelação e iluminam em forma profana. A relação amorosa com Asja Lacis: (i) acordou Benjamin para uma vanguarda cultural (de que Asja fazia parte e que diferia decisivamente do sonho de revolução, próprio do "Jugendstil"); (ii) fez com que ele aderisse ao que denominou de "comunismo radical" ao entender a Revolução de Outubro de 1917 (na perspectiva  do trauma da destruição levada a cabo pela guerra de 1914) como a "... primeira tentativa (da Humanidade) para se fazer com o controle do novo corpo (da técnica)"; (iii) neste "Diário de Moscovo" (6 de Dezembro de 1926 a finais de Janeiro de 1927) percebe-se que a deslocação de Walter Benjamin a Moscovo (ainda que várias outras razões sejam aduzidas), teve a ver com Asja e com necessidade (imperativa) de estar muito perto dela, pode ler-se: "Com Asya, novamente constante alternância entre o "tu" e o "você"..." (12 de Dezembro)... Decididamente, Asja Lacis passou a ser a sua obra de arte verdadeira (única, autêntica, não reprodutível); Asja Lacis talvez seja, nos dias de hoje, um (o) seu melhor vestígio: rabiscado e tracejado em todos os seus escritos...
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O que é exactamente a aura? A aproximação ao conceito de aura um dos temas mais glosados é a “destruição da aura” (fragmento IV) de “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica” de W. Benjamin. Neste fragmento, pergunta-se e responde-se: “O que é propriamente a aura? Um entretecido muito especial de espaço e tempo: aparceminento único de uma distância, por mais perto que ela possa estar. Descansando numa tarde de verão, seguir a linha montanhosa no horizonte ou a extensão dos ramos que fazem sobre sobre aquele que descansa, isso quer dizer, respirar a aura dessas montanhas, desses ramos”. Pode fazer-se aqui um percurso rápido pelo aparecimento dos conceitos de traço e aura na obra de Walter Benjamin. Depois, há que trazer à colação Bruno Tackels e a sua "história da aura". Na introdução: (...) “Peu de mots sont aussi chargés d'aura que le mot d'aura. Peu de mots qui se soient pliés à tant d'interprétations différentes, pour ne pas dire contradictoires : charge, présence, tension, apparition, réplique, autorité, force, flux, lumière, manifestation... – quelque chose que l'on ne sait pas dire, qui indique qu'il y a encore à saisir derrière le sens qui apparaît. L'histoire et les avatars de ce mot élaboré par Walter Benjamin dans les années trente pourraient même nous inciter à penser qu'il est lui-même victime de son aura, devenu pure aura, une pleine absence sans extériorité.” (...). Aquele percurso (bem como a citação da introdução do livro de Tackels) podem facilitar a leitura de dois escritos que, à saciedade, provam a importância de Asja Lacis na vida (e na obra) de Walter Benjamin.
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O primeiro escrito (1928)... "Direcção única: esta rua chama-se rua Asja Lacis, nome daquela que como engenheiro a abriu no autor"... Em poucas palavras, tudo dito: esta rua chama-se Asja Lacis que como engenheiro a abriu no autor.
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O segundo escrito (retirado das Memórias de Asja Lacis)... "Recordação de Walter Benjamin em Capri (1924)". "... En una ocasión llevaba un libro de hebreo consigo. Me dijo que estaba aprendiendo hebreo. Quizás emigraría hacia Palestina. Su amigo Scholem le había prometido allí una existencia segura. Me quedé sin habla. Luego tuvimos una fuerte discusión: el camino de un intelectual progresista llevaba a Moscú, pero en ningún caso a Palestina. Hoy puedo decir con tranquilidad que si hubo alguien que consiguió que Walter Benjamin no emigrase a Palestina, ésa fui yo.”
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Para Walter Benjamin a forma de percepcionar a realidade (a partir de 1924), depois de conhecer Asja Lacis, alterou-se significativamente (radicalmente?). Passou a percepcionar ((consulte-se: "Experiência e pobreza"(1933) - destaque-se a referência aos efeitos da primeira grande guerra) guerra )) a realidade de forma "sinestética", seja: o centro de um sistema "sinestético" não se aloja no cérebro, está em toda a superfície do corpo; a subjectividade deixa de estar confinada ao corpo biológico e joga um papel de mediadora entre as sensações internas e externas e as imagens da percepção e da memória. Considere-se: "... a percepção sinestésica é a regra, e só não tomamos consciência dela porque o conhecimento científico altera o centro de gravidade da experiência, de tal modo que desaprendemos de ver, de ouvir e, de uma maneira geral, de sentir, para deduzir, da nossa organização corporal e do mundo como o físico o concebe, o que devemos ver, ouvir e sentir." (Merleau-Ponty)... ((Não pode, em qualquer circunstância (sem deixar de valorizar a vida cultural e artística), deixar de ter em conta as circunstâncias sociais, económicas e políticas que resultavam do contexto (político) em que se vivia (desde 1924 a 1936). Com realce (i) para o percurso político de Hitler: em 1924 está preso e escreve "Mein Kampf" (A minha luta); em 1934 é "Furer und Reichskanzler" (Líder e Chanceler) do terceiro "Reich"; em 1936 é celebrado um acordo entre a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler...); e (ii) para o impacto da "Grande Depressão" (Queda da Bolsa de Valores de Nova Yorque))...
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Importa agora dar um salto no tempo e ir ao encontro de Charles Bell (com formação em pintura e cirurgia), autor de "An idea of a new Anatomy of  the Brain (1811)": o livro considerado a "Carta Magna" da Neurologia... Foi ele que, pela primeira vez, estudou o quinto (sétimo) nervo o grande nervo da expressão, acreditando que "o semblante é o índice da mente"... (Considere-se, a talhe de foice que, em 1872, Charles Darwin publicou "A expressão das emoções no homem e nos animais, onde discordou de Charles Bell). Adiante... Revisitar Charles Bell tem como objectivo realçar a importância do rosto (olhe-se agora para o rosto de Asja Lacis imagem - rosto que Benjamin bem terá observado muito ao pormenor - e sinta-se quanto ele ainda interpela quem o olha): trata-se de um rosto expressivo, uma maravilha de síntese, similar a uma impressão digital, mas legível através do sentido comum. Atente-se que é no rosto que os três aspectos de um "sistema sinestético" - a sensação física, a reacção motora, e o significado psíquico - convergem em signos e gestos - aquilo que constitui a linguagem mimética. 
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Eis-nos chegados ao busílis da questão... Percepcionar a realidade (o instante, o actual, o acontecer, a barbárie) na linguagem mimética do tempo da natureza e do tempo da história ("a crise na experiência cognitiva causada pela alienação dos sentidos que torna possível que a humanidade contemple a sua própria destruição com prazer") parece ser impossível: porque o que a linguagem mimética diz, é tudo menos conceito. Tendo Walter Benjamin aprendido a ler (numa relação amorosa com Asja Lacis) uma linguagem mimética escrita na superfície de um corpo de mulher (e que o rosto Asja quotidianamente exprimia) - linguagem mimética entendida como convergência entre um mundo exterior e a expressão do sentimento subjectivo - percebeu que a linguagem mimética atraiçoa a linguagem da razão em favor da experiência, e sem direito a conceitos. "Percepcionar a realidade, aderir e desposar os movimentos dos objectos (afirma José Gil em "Poderes da Pintura") são operações reais do corpo, o corpo molda-se ao movimento não porque o vê (porque não o vê) mas sim porque o espaço é percorrido e moldado pelas vibrações que atingem o corpo e nele desencadeando um devir-espaço...". Assim sendo - e depois de pausadamente se (re)ler "Direcção única: esta rua chama-se rua Asja Lacis, nome daquela que como engenheiro a abriu no autor", pode alguém admirar-se com facto de traço e aura serem "conceitos tramados"? Conceitos que Walter Benjamin tenta construir, essencialmente, em "Pequena história da fotografia" (1931) e em "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica" (1936)... 
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Só agora estão criadas as condições para estudar o ensaio "A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica", olhando para esse ensaio como uma afirmação da cultura das massas (e das novas tecnologias, através das quais a cultura é disseminada)? Sim... Só então agora se conseguirá entender o potencial cognitivo e político das experiências culturais mediadas tecnologicamente? Sim... Só depois se entenderá porque é que o cinema é a arte da era planetária? Sim... Ficou tudo dito sobre Asja Lacis e Walter Benjamin? Não!

Notinhas de rodapé
1. (A propósito de "conceitos tramados" (sem nada ter a ver com a obra de Walter Benjamin)... Tão só (e apenas) em jeito de diversão: para pensar a evolução semântica da palavra trama, da pintura à impostura, eis aqui um curioso texto...
2. Documento para consulta...,
3. Sítio a visitar..., e texto a ler...
4. Livro para ir lendo...
5. Muito interessante...
6. E, para ( e por ) quem é W. Benjamin, escreveu isto?  Para (e por) quem haveria ser?
7. Em Maio de 1925, W. Benjamin alertava Scholem para o facto de dentro de algumas semanas ir sair (no Frankfurt Zeitung) um ensaio: "meu e de uma amiga de Capri, um ensaio sobre "Nápoles", que está a ser composto"... De facto, esse artigo foi publicado em Agosto de 1925. Ainda que Adorno negue a co-autoria, a verdade é que Asja Lacis, nas suas memórias, escreve: "Benjamin sugeriu: vamos escrever a dois um artigo sobre "Nápoles". E de facto escrevemo-lo."...

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