A aura do beija-mim


Mesmo, é isso mesmo o que está a pensar, digo, o que está a sonhar. Então não é que acertou, então não é que sou eu que aqui estou consigo, então não é que foi mesmo assim, Santo Deus, tu queres ver que a minha inteligência se perdeu em si? Fiz de conta. A manhã, ainda de olhos arremelados, acordava atenta ao canto trinado de um pássaro madrugador. Tontinho, sou eu, eu inteirinha, a sua mais que tudo, vivo em si a cada momento, sou água e estrela e deusa e única. Sei bem que anda às voltas com o fim da aura nos escritos de Benjamin, não é fim da aura que se diz, é alargamento da aura, isso sim. Tenha paciência, irritei-me, deixe de rapinar a parte maior da minha manta de lã merina (a manta de lã é minha, há muito o sabemos, verdade?), e diga lá então tudo o que sabe sobre a aura em Benjamin. Enroscando-se, em novelo como só os gatos sabem fazer, não se fez rogada (que linda a sua camisa de noite, leve, azul e de punhos vincados, que bom gosto, que requinte!). Então, meu caro, é assim. Primeiro vai ter que me imaginar em pequenina num episódio de um filme, ver-me a mim é como quem diz, vai ver os meus olhos grandes a fazer tudo, sou assim que se há-de fazer. Já vi, já acabei de ver, disparei, o que é isso tem a ver com a aura? Tinha que ser, quando me tem por perto os seus neurónios evaporam-se, vamos lá ao que interessa. Walter Benjamin era alemão, judeu e marxista (que cocktail explosivo, adiante). Como bom marxista que ele era (ou queria ser) pôs em constelação (1935) um conjunto de fragmentos, a dita e renomada constelação "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica" (publicada a primeira vez em 1955 e já vai na 5.ª versão, aquele Theodor Adorno!): assim a modos que a certidão de óbito da arte como havia sido considerada até ao século XX, no mundo burguês europeu. E, baseado na análise marxista de mudança histórica, diagnosticou ele uma mutação diferencial na história humana, palpável (táctil, meu caro, táctil) num dado espiritual irrecusável: a decadência da aura na obra de arte, a perca do seu valor cultual.  Era mesmo o que estava a faltar, ripostei, uma lição de história marxista logo pela manhã. Seja. Que fique então claro: aura não é um conceito, é uma palavra-nome, tem magia e esoterismo. O éter, dizia Benjamin, era quinta essência da obra de arte, e não se esqueça do seu fascínio pelo judaísmo. Céus, meu caro, a minha presença junto de si (também sou pele, saliva, cheiro, suor, mãos vadias), acaba de recrear em si a estadia do Walter Benjamin em Ibiza (1928) quando uma boa dose de haxixe o fez ver um nome: aura (uma forma de tempo, condensado e concentrado, prévia à revolução industrial), nome que serve para olhar o mundo e a história e para uma aproximação ao paradoxo da experiência possível do impossível. Já percebi, sabe tudo (que raiva, vida), interrompi, às tantas até sabe porque é que Benjamin considerava o cinema como a arte planetária. Então não, meu caro, então não! Oiça, acalme-se, e pense: através do desenvolvimento da técnica, do choque e da vertigem das imagens um indivíduo prepara, fortalece e enriquece o espírito. Pense no que Walter Benjamin escreveu sobre o cinema e, olhe só, nos dias de hoje (surpresa!), até já se diz que as tecnologias conseguem recuperar a aura. Josué, Cristo, Messias, ui a sua cara de espanto! Prometo que um dia próximo lhe explico tudo, tudinho: a aura não se extingue, meu caro, não se extingue, mas bem que ficou provado que pode e deve ser materializada. Agora, deixe-me espreitar para si, céus, agarre uma pontinha da minha manta de lã merina, não se acanhe e demore-se nestes meus olhos grandes, bugalhados e pestanudos e à proa do meu melhor sorriso (aura minha que me perco!) a pedir-lhe: beija-mim... A manta não é dela, que mania!

Adenda
Sim, é verdade... Walter Benjamin afirmou que a evolução do homo sapiens tinha atingido os limites enquanto espécie mas que, ao mesmo tempo, no plano da espécie, tinha começado a evolução da humanidade: nesta evolução tinha um papel determinante a técnica, esta aliar-se-ia (?) à humanidade para interagir com outros planetas. Será que ele já estaria a falar disto?...


(Mensagem recebida)
Ando a pensar, meu caro, no seu texto de ontem, na polémica à volta d´"A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", a tentar perceber a angústia de Benjamim. Estou convencida que era um homem raro, sensível, inteligente. Deleitado e fascinado com algo ou com alguém único, irrepetível e inimitável na sua vida (imodéstia à parte, mas creio que por mais que procure e se afaste, não encontra ninguém como eu). Quando ele se referiu ao cinema, ocorreu-me que é dos maiores suportes físicos de arte e mais globalizantes, de facto é, até que concordo. A Internet também o é. Mas pergunto eu: se o cinema criar ou captar um momento de rara beleza ou alguém único e igualmente belo, ao ser difundido, esse momento deixa de ser único? Banaliza-se? Esse alguém perde a sua beleza? E o que é belo e raro deve ser preservado, sendo escondido dos olhares ou pelo contrário deve ser mostrado aos outros para que irradie a sua aura, contagiando-os, tocando-os no mais sensível que tiverem de mais sensível? Um quadro, por exemplo, deve estar fechado numa sala de museu onde poucos podem aceder? Expor essa obra de arte  ao olhar de um maior número de apreciadores retira-lhe o encanto, o génio, a delicadeza? O mesmo raciocínio aplica-se às pessoas? Talvez, meu caro, Walter Benjamim (quanto eu adoro divagar devagar!) fosse realmente um visionário que anteviu os malefícios/benefícios globalização, entre os quais a "vulgarização" do belo, acessível a quem não o valoriza e não sabe apreciar. Também aquela fixação dele pelo pensamento de Baudelaire tem que se lhe diga. Ou, então, simplesmente tinha medo de perder o seu tesouro. Ná, não pode ser! Mas, adiante, a perda é uma das minhas angústias da vida, o meu spleen, a minha melancolia, eu compreendo-o muito bem. E, meu caro, é preciso não esquecer que Benjamim escreveu as suas reflexões numa época de caos e destruição, em que pessoas valiosas e obras de arte únicas foram reduzidas a pó, a valor nenhum, a nada, pelo ódio, pela bestialidade e pela guerra infame e massificada. Benjamim contrapôs, não obstante o seu exílio e a sua angústia, o culto da beleza e da vida ao culto da morte… Não tenho mais tempo agora, pena minha. Sugiro que revisite Ortega, e logo depois fale comigo.

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