O tempo é vida, mora no meu coração e eu sou a sua cicerone

Claro que fez bem, meu caro, mas devia ter-me prevenido...  A propósito, lembra-se de eu lhe ter falado que, por vezes (umas vezes neura, outras nem tanto), escolho um dos livros (de lombada fina) que repousam no móvel cá de casa (digo repousam porque nos últimos anos arredei-me deles)? Com um ar de ansiedade, assim me perguntou a única fada real, manhã de domingo muito cedo. Sim, recordo-me bem, respondi, foi nessa altura que me falou do livro "A Princesa" de D. H. Lawrence e (como me lembro bem, suspirei) até, de mansinho, me leu a página 11, onde se diz que "a minha Princesinha é a única fada real"...; mas mal que lhe pergunte, o que é que eu fiz bem, o que é que lhe devia ter dito, a que propósito me fala dos livros de lombada fina que repousam no móvel da sua casa.... Ei, ei, ei, atalhou afogueada e de narizinho arrebitado, gosto que diga que eu sou (graciosa driblou o sentido das palavras) a sua Princesa (não princesinha) mas veja se tem calma e me ouve. Fez bem em ter parado três dias para pensar em mim e na falta que eu lhe faço todos os dias (como é que ela sabe?!), mas devia ter-me avisado (não que eu não soubesse onde estava, mas ficava-lhe bem ter-me prevenido; eu ainda sou uma criança contente por ouvir o som do meu próprio nome, às vezes até me mantenho à parte para o ouvir)... E, continuou, aproveitei a sua ausência nessa sua experiência trôpega de retiro do opus dei, para tirar à sorte do meu móvel de castanho-cerejeira, um outro livro de lombada fina e que contente que fiquei! Li, deliciada, a dedicatória do Michael Ende onde ele assume que se inspirou em mim (eu sei que o tempo é maleável e conheço a inocência de saber brincar, saber viver e de me saber maravilhar com o mundo que me rodeia) para imaginar uma menina orfã, com horror aos homens cinzentos (ladrões do tempo) e com um dom muito especial: o dom de saber escutar. Sem a desmentir (quanto ao retiro), dei por mim, a pensar o que é que a minha necessidade de me retirar três dias para pensar na minha vida (tu queres ver que ela sabe que eu só pensava nela e que fui repreendido por esse facto?) com essa menina orfã com cento e tal anos e que tinha o dom de saber escutar.... Essa menina (os seus anseios, as suas dúvidas, as suas alegrias), soprou-me, são trama de uma estória apaixonante e divertida (e a quem Michael chamou Momo para contrariar o rei momo da mitologia grega); só com escutar (imagine que ela nunca se esquecia de parar para cheirar as flores), consegue que os tristes fiquem alegres e que os aborrecidos com a "vidinha" (como é o seu caso) tenham ideias divertidas e que até os moles se entesem... Deixe-se de fugir para retiros e venha ver-me - estou agora a sentir-me Anne Janelle e nem sei bem porquê (ou se calhar até sei!)... Já lhe disse que tenho um novo e lindo vestido verde-musgo talhado com o feminino de mim? Venha ver-me, olhe que ainda hoje conservo, alimento e apuro esse dom de escutar e de devolver o tempo: eu e a minha sábia tartaruga Cassiopeia. Embatuquei (a minha imaginação já estava galeria repleta de desejos desenfreados), e perguntava-me (para esfriar uns estranhos calores atiçados, uff, uff) o que seria o tempo; e eis que ela, linda de viver, franja solta e emboscada em recantos de felicidade e harmonia a rodos, me ciciou, anelante: o tempo é vida, mora no meu coração e eu sou a sua cicerone

Adenda
Acabo de ler, meu caro, esta nossa conversa e não é que me sinto comovida? Ora essa, respondi a esta interrogação da única fada onde a beleza se demora, com um “não acredito”, terei escrito algo que não corresponde à verdade ou desta vez (há sempre uma vez) reproduzi os seus sentimentos? Nada disso, garantiu, nada disso, apenas penso que podia ter sido um pouco mais preciso: eu sou fada porque transformo em ouro tudo o que toco; sou momo porque sei ouvir e dou alento aos outros; e sou tartaruga porque tenho o dom da premonição. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, excesso de vaidade é pedantismo, retorqui… Sorriu e soletrou, com aquele ar de quem diz maroteiras: tudo o que nos compõe como Ser é importante, vamos lá Pensar com a mente, Sentir com o coração e Agir com o corpo, até parece fácil, não é? Não percebo nada, nadinha de nada, matutava eu comigo às escondidas, enquanto ela, cantarolava, rindo-se a bandeiras despregadas: eu sei, eu adivinho, meu caro, a sua preocupação, ou seja, o seu caso é um caso raro porque pensa bem com a mente, sente forte com o coração mas para agir com o corpo a cabeça demora a sair da carapaça... Atado com é meu costume (ela estava a chamar-me cágado?!), ouvi-a sussurrar que se eu lhe falar ao fim da tarde, ela me explicará as vantagens das festas na cabeça: com festas e festinhas, a cabeça espreguiça-se lentamente e acelera e acelera e acelera no agir. Mas disse mais, disse que até já tinha conversado com o seu super-herói preferido, o Batman, sobre este assunto quando ele se armou aos cágados (se armou aos cágados..., esta agora, também a mim me chamou cágado, senti-me!) e teve o arrojo de lhe dizer “não é quem eu sou por dentro e sim o que eu faço que me define”… Teve a resposta merecida e automática, soprou-me no meu ouvido esquerdo: uma treta, quem não é nada por dentro, não tem direito nem a festas nem a festinhas na cabeça... Passou-se, pensei comigo, vou falar com ela ao fim da tarde, está decidido!

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