Tudo é verdade e caminho num sonho que não dói


Não sei se sonhou comigo (penso ter ouvido dizer a voz suave da minha fada que se me apresentou de cabelo apanhado e franja arrumadinha) mas alguma coisa se passou porque estamos sincronizados. Por mim, estamos bem assim (melhor, seria estarmos juntos). Estamos sincronizados? – Perguntei, com vontade de saber com que propósito mais uma vez me tinha acordado, quando a manhã, pé ante pé, ainda vinha longe. Se ela estava acordada e eu a dormir, matutei, para estarmos sincronizados ou sonhei com ela ou alguma coisa se passou; só pode ser e ela tem razão. Se não tenho ideia de ter sonhado com ela, então alguma coisa se passou…Claro que nunca tem ideia de ter sonhado comigo, interrompeu-me, porque os deuses vendem sonhos quando os dão; e a sua forretice genética inibe as suas frágeis memórias, com medo de ter de pagar um cêntimo que seja. Dispenso essa sua corrosiva e malfadada ironia, invectivei-a; mas relevo o seu comentário porque, docemente, não só me apiedei da sua vozinha rouca e com frio quanto a sua presença é sempre para mim um agrado silencioso e fresco. Aproveito, continuei, para lhe sugerir que se resguarde da chuva para não se constipar e para não ficar com dia perdido de tanto se assoar; e até me apetece chamar-lhe friorenta flor (ou florzinha friorenta) de estufa. Ainda que os seus elogios de mel entornado me agradem (mas nunca se esqueça que a minha ironia é sempre (bem) fadada), disse ela torneando a rouquidão, vamos ao que agora interessa. Estamos sincronizados porque os nossos cérebros ainda que tenham algo em comum, são diferentes. Como sabe ou devia saber (a sua preguiça é um seu precioso dom natural), o cérebro está organizado em diferentes sistemas, tendo cada um deles os seus próprios processos de desenvolvimento. Durante a normal activação desses processos, as áreas cerebrais especializadas, passam por um período sensível durante o qual a sua função geneticamente determinada é influenciada pelas condições do ambiente. Interrompo-a, asseverei com convicção, porque tenho a certeza que as predisposições genéticas que influenciam o desenvolvimento, podem adaptar-se quando as condições do ambiente se alteram. Sei que assim é, porque, por exemplo, nos dias em que a imagino a si como uma princesa medieval com cintura fina, de trovadores, gentilíssima e colorida, tudo é novo, diferente e real por dentro e por fora. Óbvio, meu caro, é exactamente como se esforçou por me explicar! – Exclamou com ar feliz, enquanto apanhava o cabelo com ar prazenteiro. Não percebe? Eu explico-lhe, devagar como convém. As áreas corticais do cérebro especializadas em estímulos auditivos participam no tratamento da informação visual nas pessoas congenitamente surdas. Como o meu caro (sem ter consciência disso, reconheço), é uma espécie rara de pessoa congenitamente surda porque nunca houve o que eu (sempre com meiguice, óbvio) lhe digo, o seu cérebro fez o que devia fazer, ou seja, traduziu em palavras o que a minha imagem (aquela de que mais gosta, cabelo apanhado e franja arrumadinha) lhe transmitiu num dos seus sonhos de ontem à noite. O seu cérebro pensou dentro dele e dentro do que eu quis. Admitamos que é como diz e pensa, retorqui. Então, sendo assim, concluo que eu não ouvi a sua voz e que apenas a vi a si em sonhos (só falta dizer que passo a vida a sonhar consigo!); e, pasme-se, terei sido eu que disse que estamos sincronizados e sou eu que penso que o melhor seria estarmos juntos. Ora aí tem, respondeu, bem claro e bem dito (estou mesmo surpreendida consigo!) o fundamento causal de estarmos sincronizados: a sua plasticidade cerebral agiu de forma correcta porque se alimentou do antiquíssimo de nós. E, meu caro, quando até a plasticidade cerebral joga a nosso favor, tudo é verdade e caminho num sonho que não dói. Sei que sabe que minha missão no mundo, é existir claramente e é saber existir claramente sem pensar nisso porque eu vivo de viver; mas sobra-me agora um vago anseio de viagem que o coração (o meu coração é sempre um albergue aberto para si, não esqueça) me aconselha e não tolda; e não sei porquê. Não é que sem darmos por isso, ela e eu, de forma alegre e sincronizada, fizemos a mesma pergunta e no mesmo tom, ritmo e timbre de voz: porque será? E, de súbito, na largueza fria do vento norte, embrulhada em estrelas e flores, uma resposta misteriosa e comovida não se fez esperar:
 - Porque tudo é verdade e caminho num sonho que não dói!

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