Via Graça (7)

Essa agora?! Disse para comigo, matutando na expressão “aliás, as suas linhas escritas, sem mim, não teriam significado…Ou será que ainda não deu por isso?” Lancei, à afirmativa/interrogativa expressão, um ar de troça como se estivesse à espera de algo de novo, como se estivesse a preparar-me para uma explicação que fosse convincente. Dirigi-me à janela, e olhei lá para fora com ar de quem quer ouvir qualquer coisa firme mas difícil: era mais um daquelas momentos onde fantasias semivislumbradas, sempre presentes no ar, pousavam interrogativamente num minuto e depois seguiam caminho esvoaçando.
Estremecendo ligeiramente, por causa da minha irritabilidade à flor da pele, recordei que o meu avô fez, com a sua habitual generosidade embaraçada, um delicado poema (que afinal eu tenho num caderno azul maneirinho de merceeiro) sobre os medos e as fragilidades de uma fada menina que nasceu princesa linda, vulnerável e especial, no início de um mês de Fevereiro, e que continua a dar-se ao luxo de continuar a fazer “tolices e refilices” porque não desiste nem de ser fada nem de ser menina. Cá para mim, também acho que, por vezes, perde “os pedais e as joelheiras”, interrompendo a vida (seja de quem for) com um sorriso tenso, um humor altivo e um abanar de cabeça, sempre que a confiança se desvanece.
Com um gesto muito suave, peguei no meu caderno azul maneirinho e, antes de reler o poema do meu avô, recordei a luta pelo significado dos contos de fadas de Bruno Bettelheim, em A Psicanálise dos Contos de Fadas: “Mas o meu interesse nos contos de fadas não resulta de uma análise técnica de seus méritos. É, ao contrário, consequência de me perguntar por que razão, na minha experiência, as crianças - tanto as normais quanto as anormais, e em todos os níveis de inteligência - acham os contos de fadas folclóricos mais satisfatórios do que todas as outras estórias infantis. Quanto mais tentei entender a razão destas estórias terem tanto êxito no enriquecimento da vida interior da criança, tanto mais percebi que estes contos, num sentido bem mais profundo do que outros tipos de leitura, começam onde a criança realmente se encontra no seu ser psicológico e emocional. Falam de suas pressões internas graves de um modo que inconscientemente compreende e - sem menosprezar as lutas interiores mais sérias que o crescimento pressupõe - oferecem exemplos tanto de soluções temporárias quanto permanentes para dificuldades prementes. Esta é exactamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana - mas que se a pessoa não se intimida mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, no fim, emergirá vitoriosa.”
Saboreei de seguida a sensação docemente momentosa de confirmar que o poema do meu avô existe, que o poema foi escrito no aniversário de uma fada e que, por amor às crianças, tem que ser divulgado. Porque muitas meninas e muitos meninos gostariam que lhes lessem um poema assim.
Essa é a minha opinião, interrompeu-me, na voz do vento, a fada menina que ainda acrescentou: suponho que tenho que o avisar que tem bater duas vezes na madeira, antes de plagiar o que eu penso; exija mais de si próprio. 
Mas o avô é meu e o poema também, retorqui enfadado
Nesse momento, senti a presença (uma espécie de abraço sensual) de uma leve e fresca brisa de vento que alterou o meu pensamento; brisa de vento que provocou em mim aquele olhar interrogativo e expectante das pessoas surdas...Vá lá saber-se porquê.
Mas, confesso, pensei comigo que devo ser um nadinha mais cauteloso!

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